29.9.04

QUARTAS-FEIRAS

Hoje não sinto nada nem dor nem alegria nem frio ou sono ou tristeza nenhuma paixão nem ódio nem mesmo aquela velha vontade de me jogar da janela defenestrar-me nada só vazio nem mesmo tédio angústia ou solidão como pode alguém sentir-se assim perplexo de olhos arregalados boca escancarada cheia de dentes que não mordem nada nem ninguém? é desesperador saber que a gente não está entendendo um catzo, nada de nada, talvez porque não há nada pra se entender, maldito dia vazio mas agora sim eu entendi esse ridículo mistério das quartas-feiras úteis repletas de máquinas batendo de cafés sendo feitos de adoçantes sendo pingados em xícaras também perplexas como eu tilintando de vazio e bode carimbado assinado e registrado em cartório digitado e datado em calendários absurdamente equivocados telefones aos berros de teclas piscantes relógios desconexos canetas rabiscando garrafas térmicas processos xerox copinhos descartáveis jogados no lixo recolhido pelas faxineiras junto com as nossas individualidades nossos ideais nossas vidas todo o nosso bom e mau humor tudo o que somos e sentimos só deixando esse vazio misterioso das quartas-feiras.

[Da série Texto Velho Porém Pertinente, São Paulo, 1994]

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