29.9.04

O FUTURO

Mas fazer o quê? aliás essa pergunta há muito me acomete fazer o quê? e o que é que pode fazer um homem comum nesse presente instante senão sangrar? e digo eu que não sei porque não sou paga pra isso, e mesmo que eu saiba não me cabe relatar aqui nestes modestos escritinhos que, em nome de Deus, servem apenas para tentar expor esse pequeno vazio que me acomete às terças-feiras misto de tédio e nada, de amor ou ódio ou ilusão nem expectativas ou segundas intenções nem planos ou sonhos, sei lá o que é que o mundo vai fazer amanhã, talvez continue girando pra direita como de costume ou talvez não amanheça ou quem sabe os relógios parem e o Congresso Divino decrete a aposentadoria dos astros a exoneração dos orixás a expulsão dos santos e dê cartão vermelho aos gnomos e forças da natureza e o árbitro celeste seja considerado corrupto e vendido só não dá pra xingar a mãe do juiz porque como todos sabem é uma santa e ninguém pode negar; ou pode, sei lá; o fato é que ficam assim revogadas todas as leis, cassados os direitos dos santos e seus feriados, papas orixás budas hindus monges tibetanos astros celestes e mestres sufis que sifodam, o sol e a lua que se casem ou melhor se amancebem como as estrelas e os planetas; que o eixo se desleixe o gelo se degele o sol fique desolado; quem venha do norte fique desnorteado como de costume; quem usa camisas com gola seja degolado; que os lápis fiquem desapontados com esse mundo mudado e desbundado e o que esteja certo fique deserto e quem se feriu fique deferido e quem não estiver com pressa que decorra ora bolas! o que está feito que não se ponha defeitos, quem é fino que se defina logo e quem é tabagista que se defume ou se defunte antes que sua geração se degenere e que seus filhos desfraldem as fraldas sujas do excremento extremo do espaço astral, onde quem não tem signo fica designado e desigual e quem não tem luz no olhar fique deslumbrado com a aurora do novo universo surgindo atrás do descortinado onde quem não for louco ficará deslocado em vista desse leque de novas possibilidades onde nada será como dantes e quem não pensar será então dispensado e quem não pagou o dízimo não será dizimado os carmas serão deslembrados e perdoados sem a mínima chance de serem cobrados porque todos os santos astros budas e orixás e etceteras serão sumariamente despedidos e dispensados pra que não mais nos torrem o saquelho, não tenhamos mais questionamentos ou divergências ideológicas ou teológicas causando apocalipses múltiplos a nível universal ou paraísos artificiais; sei lá o que é que pode acontecer amanhã, quem quiser que se mate e abandone o barco ou desça do bonde andando, mas quem viver verá e essa eu pago pra ver; até mesmo se não acontecer nada disso, nada de novo, nada de nada, ainda assim eu faço questão de ficar surpresa.

[Da série Texto Velho Porém Pertinente, São Paulo, 1994]

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