26.4.14

Cantoria ostentação

A cantoria é um debate ou peleja, em versos improvisados, geralmente disputada por uma dupla. O repente ou desafio é uma tradição cuja origem remonta aos trovadores medievais. Especialmente forte no nordeste brasileiro, é uma mescla entre poesia e música na qual predomina o improviso. O repente possui diversos modelos de métrica e rima, e se subdivide em subgêneros de acordo com o acompanhamento: coco ou embolada (acompanhado de pandeiro ou ganzá), aboio (quando é apenas a voz) e cantoria (acompanhado de viola, rabeca ou violão).

Cantar repente exige muita astúcia e rapidez de raciocínio. O repentista ou violeiro precisa ter boa memória e precisão, pois passam horas atacando e se defendendo, respondendo charadas, recitando trava-línguas e desfazendo insultos. Segundo Silvio Essinger, "Não importa a beleza da voz ou a afinação – o que vale é o ritmo e a agilidade mental que permita encurralar o oponente apenas com a força do discurso."

O objetivo é vencer o combate, desqualificando o adversário e exaltando de si mesmo vantagens como sua própria habilidade de cantador ou outros feitos, reais ou imaginados.

Um dos estilos mais clássicos, o octassílabo:


Sendo campeão eu sigo
e para atingir minha meta
e eu não conheço poeta
médio, novo, nem antigo
só tem pra cantar comigo
se Pinto ressuscitar
se Xudu indo voltar
que no resto eu tenho dado
meu verso é peso pesado
pra cantador carregar
//
Foi Deus quem me fez assim
para ter coragem e classe
se a besta-fera cantasse
ainda perdia pra mim
se estiverem achando ruim
o meu rojão de cantar
se não quiser se acabar
arrede ou fique calado
meu verso é peso pesado
pra cantador carregar
//
O Deus eterno profundo
esse dom me ofereceu
e o povo já me elegeu
o primeiro sem segundo
sou bom em tudo no mundo
em tudo quanto é lugar
no céu, na terra e no mar
no presente, no passado
meu verso é peso pesado
pra cantador carregar

Também octossílabos são os versos dessa canção de MC Guimê, com um ritmo um pouco diferente mas objetivo similar, onde o cantador desfila suas vitórias e procura humilhar o adversário (imaginário) ostentando suas posses. Portanto adequadíssimo a atual estrutura social onde o que vale não é o fio de bigode, e sim a bandeira do cartão de crédito; e onde símbolos de poder são marcas:



De Ranger Rover, Evoke
na pista eu arraso
pro Instagram, um close
ela comenta, eu caso
e aqui são vários casos
pra gente desenrolar
camarote fechado
e champagne pra estourar
//
Uns vê que o cifrão
de desenho animado
Sonha em ser o R
pra poder estar do lado
E é nóis que tá pesado,
satisfação total
Agradeço ao meu Deus
por nos livrar de todo o mal

***
Em todo caso, vale dar uma olhada no estilo do rapaz de Osasco, Guilherme Aparecido Dantas, ainda sem nenhuma tatuagem, mandando uma rima de zoeira com o pai:



O bagulho aqui é pesado.

* * *

P.S. corre um boato em Pernambuco de que o repente teria antecedido e inspirado a criação do rap (que nasceu como improviso falado sobre bases musicais); como o ufanismo prejudica a credibilidade, não chega a ser uma teoria levada à sério - o fato é que o ritmo encontra sim vários pontos em comum com o gênero americano.

Nenhum comentário:

Postar um comentário