Enfim, a viagem é longa e começa às sete horas da manhã no aeroporto de Congonhas. Trocar de avião em Cuiabá, ou Brasília (dá na mesma), mais uma escala em Brasília, ou Cuiabá (é tudo igual, odeio aviões e suas curtas distâncias), finalmente desembarcar em um forno gigante chamado Porto Velho. Ficamos esperando o vôo fretado que nos levaria a Guajará-Mirim prostrados na sala VIP do inferno, digo aeroporto, que de especial tinha apenas o fato de ter ar-condicionado. A esta altura do campeonato eu já tinha perdido completamente a noção de tempo, devido ao fuso (-2 horas), ao cansaço mental e ao fato quase irrelevante de ter esquecido o relógio em casa. Então, mais um tanto de pânico na subida do Bandeirante, cujo piloto se empolgou e desandou a fazer manobras e vôos rasantes a pedido dos fotógrafos. Mas o legal do aviãozinho é que, por ser pequeno, aumenta a integração da tripulação com o comandante, que chegou mesmo a ser aplaudido e ovacionado a gritos de ‘eô, eô, comandante é o terror!’ após o pouso tranqüilo de um vôo pra lá de estressante. Nesse ponto cabe dizer que sim, a paisagem é linda a ponto de fazer a gente esquecer um pouco o medo de objetos voadores, mesmo os identificáveis, tipo aviões. Em Guajará, segue o catálogo de meios de transporte: uma van até o rio Pakaas, onde nos esperava o barco que nos levaria até o hotel. Quanto tempo mais? Horas ou minutos? Sinceramente não lembro.
A CHEGADA
Meu modelito selva, cuidadosamente preparado ainda em São Paulo, havia sofrido a cruel interferência do tempo, sol, chuva, vento, horas de espera e tensão sofridas. Daí que ao avistar algo parecido com as fotos mostradas pela assessoria, a emoção foi grande. A interminável viagem de ida encontrava sua conclusão no melhor estilo. A recompensa: um hotel lindamente decorado com materiais da região, uma vista extasiante, e um batalhão de garçons dando as boas-vindas e oferecendo-nos sucos multicoloridos de frutas da região coroados com aqueles guarda-chuvinhas dignos da ilha da fantasia. Comecei a compreender o que levaria uma pessoa a enfrentar tantas intempéries para chegar a esse paraíso.
Piscininha com vista para o encontro do Rio Negro e o Pakaas, e eu tão sem foco quanto esta foto devido a: amarula |
O HOTEL
O hotel é inteiro construído sobre palafitas e de maneira a aproveitar ao máximo a maior dádiva do local: a vista do encontro dos rios Mamorés e Pakaas Novos. Restaurante com vista panorâmica, a piscina integrada à paisagem, quartos com varanda. Aliás, varanda esta que fica exatamente na margem do rio. Ainda fascinada com a infra-estrutura do quarto, fui conferir a vista, silenciosa, calma, pensativa ao pôr-do-sol. Foi quando escutei um barulho na água. Depois mais perto. Será que?... Ele mesmo, o boto-cor-de-rosa me dava as boas vindas! Imitei seu assobio, ele respondeu; assobiei de novo e quase fiquei sem ar quanto ele nadou a toda em minha direção, se enfiou em baixo das palafitas da varanda. Caramba! O que mais falta acontecer? Seria o boto funcionário do hotel?
O JANTAR
Ar-condicionado silencioso, frigobar, cama king-size, tevê a cabo. Mas o que me levou a retirar meu esqueleto cansado de todo esse conforto oferecido nos quartos? Alimentar corpo e espírito com pratos tipo Pirarucu na casaca, salmão com ervas finas, surubim ao molho de cupuaçu, frango ao molho de maracujá e outras iguarias.
MATA ADENTRO
No dia seguinte acordei cedo pra pegar uma piscininha contemplando o Mamoré, mas fui logo interrompida pelo organização do passeio, ansiosos por mostrar as maravilhas da região. Bacana. Mas o problema dos passeios é o tempo que se leva para chegar lá. Horas e horas de barco. Só isso já valeria a pena, aquele vento no rosto, o sol queimando, navegando por um espelho d’água no coração da selva amazônica, vendo animais selvagens, velhos do rio, índios e tudo o mais; nem sei se precisava me enfiar em uma antiga trilha de seringueiros durante quarenta minutos sem descanso (se parar, mosquitos te comem) apenas para chegar num lago, onde não podíamos nadar, nem sentar, nem mesmo observar a vista calmamente. As muriçocas são vitaminadas e nenhuma garantia de que as onças por lá são vacinadas. Eu sei bem como é uma seringueira, aprendi sobre seringais na escola, se marcar sou até capaz de extrair um látex da árvore. Falei do tempo que se leva pra chegar? Esqueci de falar da volta. Acho que leva o dobro.
JACARÉ MANDOU LEMBRANÇAS
À noite, mais emoções. O nome do passeio é focagem de jacaré, mas do dito cujo nem o rabo. O acesso ao pântano é feito através das passarelas, que na verdade são a quase totalidade dos caminhos pelo hotel. O detalhe é que esta parte se encontrava em construção e o que faltava era de vital importância, ao menos psicológica: a cerca. Claro que a passarela era larga o suficiente para o trânsito de três pessoas lado a lado, mas, eu já comentei que tenho medo de altura? Pois é. Essa passarela se erguia a pelo menos três metros do chão. A solução arranjada pela intrépida repórter ávida de emoções e indecisa quanto a qual seria a pior das opções, voltar ou seguir adiante: ir, de braço dado com o segurança do hotel, o próprio nome indica a função, dar segurança aos hóspedes, ainda que imagino que ele estivesse esperando outro tipo de perigo, como indicava a escopeta que nosso ‘anjo-da-guarda’ carregava à tiracolo. Onças? Jacarés voadores? Não obtive resposta. De mais a mais, fui falando sem parar até a torre de observação. Focagem de jacarés é o esporte mais seguro do mundo, você fica do alto com uma lanterna procurando focar nos olhos do jacaré, que brilham. Fica mais seguro ainda em casos como este, em que a distância era tão grande que nem posso afirmar, com certeza, que o que eu vi era um jacaré ou um gato.
EASY RIDER DE MOTOCA
Ponto positivo: o segurança deu a fita. Falou que o que liga é um rolê de moto na cidade vizinha do país vizinho, Guayara-merin, Bolívia. Por R$ 5 a hora pode se alugar até uma XL350. Bacana. Posto isso, pus-me a pilhar os outros parceiros de alma corsária para reproduzirmos um easy rider básico do outro lado da fronteira. Foram muitas as tentativas de desencorajar-me; que a cidade não tinha nada, que era muito pobre, isso e aquilo. Mas aquariano é foda, quando enfia uma coisa na cabeça fodeu. Ainda por cima tínhamos recebido um convite formal da rede de tevê guayaramerense (?) que estava ansiosa para entrevistar, mostrar seus estúdios e trocar experiências com la prensa brasileña. Fugimos dessa, mas não do passeio pela cidade em curiosos riquixás movidos a moto, que parece ser o único transporte viável da cidade. Todos andam de moto e os menos favorecidos, de bicicleta. Poucos carros pelas ruas, praticamente uma Amsterdã dos trópicos. Destaque para as simpáticas chicas bolivianas, desfilando de lambreta com seus uniformes escolares desbotados: saias de pregas, gravatinha azul marinho, meias brancas até o joelho, uma verdadeira volta no tempo. Ainda tivemos a sorte de assistir à missa de graduación do colégio local. A roupa de gala do pessoal era tipo assim show de horror. Ou avançada demais, fato é que aquela combinação medonha de estampados de tons marrons era de assustar marcelo sommer.
Ao negociar o aluguel das motinhos, quanta decepção: só tinha scooter. Pelo sim, pelo não, aquele calor torrando os miolos, fazer o quê? Vamos, então. Para compensar a falta de emoção dos motores, resolvemos encarar desafio próprio: localizar o boteco mais distante da cidade e tomar aquela cerveja boliviana gelada. E roda. Asfalto, só nas avenidas, as ruas transversais todas de terra. E roda, roda, roda e nada. Consultórios médicos eram mato, mas nem sinal de botecos. Paramos em uma pulperia, mas sem sucesso, só aguardente. Mais mico: parando no que julgávamos ser um bar, pedimos uma cerveja; risadas: era um açougue. Sem luz elétrica! Visões do inferno. Que mais poderia acontecer na nossa derrubadérrima aventura? Uma das motos quebra. Começa a chover. O resto vocês mesmo imaginem.
[1] quando criança, fui mordida por um lambari e até por uma tartaruga. Acho que isso explica uma porção de outras coisas.